Porque estudar Religiosidade e Espiritualidade (R/E) na formação acadêmica em saúde

Nas últimas duas décadas, o estudo da Religiosidade/Espiritualidade (R/E) na formação acadêmica dos cursos em saúde vem ganhando destaque. Muitos profissionais da área da saúde têm desenvolvido pesquisas, tanto no nível nacional quanto internacional, contribuindo para o enriquecimento científico-acadêmico deste paradigma emergente.1 Diversas pesquisas científicas internacionais têm promovido a incorporação de disciplinas que discutem o tema da R/E e sua importância no exercício das profissões da área da saúde durante o percurso de formação acadêmica.2

 

Nesse sentido, ressalta-se a importância da inclusão desta temática na formação dos profissionais da saúde, visto que a religiosidade é uma das marcas centrais da cultura brasileira, o que torna a sua inserção um importante recurso de intervenção e capaz de favorecer diversos aspectos relativos ao cuidado. Desse modo, muitos indivíduos encontram na religiosidade e espiritualidade um suporte para poder superar as dificuldades da vida e as doenças que possam se apresentar, constituindo uma valiosa ferramenta de resiliência para ter uma melhor qualidade de vida.3

 

Sabe-se que o Brasil possui uma alta porcentagem de pessoas que praticam algum tipo de crença religiosa.4 Os resultados do Censo Demográfico de 2010 mostram que apenas 8% da população não tem religião,5 reforçando o envolvimento da população com as crenças e as práticas religiosas.

Pesquisas evidenciam que a influência da R/E sobre a saúde do indivíduo tem seu potencial impacto, somado à prática regular de alguma atividade religiosa, tornando-se um possível fator de prevenção no surgimento de doenças, diminuindo seus efeitos nocivos e reduzindo o número de óbitos.6,7

 

Entre as possíveis repercussões para a saúde que pode ter a prática da R/E, estão: diminuição do uso de álcool e drogas,1,7 melhora nos hábitos de cuidado, redução da exposição em situações de alto risco, ampliação da rede social, expansão do trabalho voluntário, aumento de crenças que ajudam a melhorar a autoestima e a dar significado à vida e situações de estresse.1

 

Para uma melhor compreensão dos conceitos de religião, religiosidade e espiritualidade, faz-se necessário a exposição das definições mais utilizadas pelos pesquisadores da temática. Segundo Koenig, McCullough e Larson8 no livro “Handbook of Religion and Health” :

 

  1. Religião é um “sistema organizado de crenças, práticas, rituais e símbolos destinados a facilitar a proximidade com o sagrado e o transcendente (Deus, força superior ou verdade absoluta)”;
  2. Religiosidade estaria associada à adesão a um “sistema organizado de crenças, práticas, rituais e símbolos designados para facilitar a aproximação com o sagrado”;
  3. Espiritualidade é uma “busca pessoal para entender ques­tões relacionadas ao fim da vida, ao seu sentido, sobre as relações com o sagrado ou transcendente que, pode ou não, levar ao desenvolvimento de práticas religiosas ou formações de comunidades religiosas”.8

 

Por outro lado, segundo Almeida-Filho,9 os modelos de formação acadêmica superior do campo da saúde em voga no país, continuam atrelados à visão estreita que preconiza o modelo de cuidados em saúde focado na doença, ao invés de atender às demandas sociais em saúde da população. Como consequência, “os egressos das escolas médicas brasileiras, em maioria, mostram-se carentes de uma visão crítica da sociedade e da saúde, com atitude pouco humanística e distanciada dos valores de promoção da saúde das pessoas”.9

 

Outro aspecto importante a ser considerado, é o compromisso social que assume a universidade na formação de cidadãos. Nesta linha de pensamento, podemos citar o renomado educador baiano, Anísio Teixeira, que considerava a universidade uma “máquina que prepara as democracias”, acompanhado do pensamento de Almeida-Filho, ao se referir à universidade como uma “máquina de inclusão social”.10 Dessarte, a temática da R/E inclui os valores democráticos, abraçando a diversidade dos valores religiosos e espirituais dos indivíduos, evitando censuras e discriminações, além dos aspectos relacionados à inclusão social, promovendo a igualdade no acesso à saúde entre seus cidadãos, incluindo todos os segmentos sociais.

 

No Brasil, a maioria das faculdades de medicina, enfermagem e psicologia ainda não têm a R/E como temática na grade curricular dos cursos de graduação. Com efeito, muitos dos profissionais graduados revelam uma ausência de competências e de treinamento para lidar com a espiritualidade e religiosidade na prática clínica, gerando uma grande lacuna em relação a este importante campo da vida e da subjetividade dos indivíduos atendidos.1,2

 

Apesar das limitações existentes no âmbito nacional, estão havendo importantes avanços em relação ao reconhecimento dos aspectos relacionados à R/E que permeiam a prática clínica e que podem ser de grande ajuda para enriquecer o diagnóstico dos pacientes, promovendo a saúde física e psicológica-emocional a partir de uma visão integral que considere todas as dimensões do indivíduo.

 

É importante ressaltar que não se pretende ensinar R/E no ensino superior já que as universidades públicas devem promover a laicidade e a livre expressão dos valores religiosos e espirituais dos seus estudantes. Da mesma forma, não está se propondo que a R/E seja utilizada como experiência de cura, o que se traduz numa violação dos direitos a respeito da liberdade de crença e de consciência. O que é preciso considerar é a necessidade de respeito e acolhimento da diversidade sociocultural e das experiências religiosas/espirituais vivenciadas pelos pacientes nos diferentes recônditos do nosso país, a favor da construção de uma sociedade democrática.

 

 

Referências Bibliográficas

  1. Moreira-Almeida A. O desafio de reconhecer e integrar a espiritualidade no cuidado com nossos pacientes. Rev. Zen Review, 2009.
  2. Santos FS Espiritualidade e Saúde Mental: Espiritualidade na Prática Clínica. Rev. Zen Review, 2009.
  3. Vasconcelos, EMA. Espiritualidade na educação popular em saúde. Cadernos Cedes, Campinas. 2009;29(79):323-334.
  4. Peres, J. F. P. Espiritualidade & Saúde Mental: Espiritualidade e Psicoterapia. Rev. Zen Review, 2009.
  5. IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico do Brasil. 2010.
  6. Guimarães HP, Avezum A. O impacto da espiritualidade na saúde física. Rev Psiquiatr Clin. 2007;34(1):88-94.
  7. Damiano RF, Costa LA, Viana MTSA, Moreira-Almeida A, Lucchetti ALG, Lucchetti G. Brazilian scientific articles on “Spirituality, Religion and Health”. Arch. Clin. Psychiatry (São Paulo). 2016;43(1):11-16.
  8. Stroppa A, Moreira-Almeida A. Saúde e Espiritualidade: uma nova visão da medicina. In: SALGADO, M. I.; FREIRE, G. (Orgs.). Belo Horizonte: Inede; 2008.
  9. Almeida-Filho NM. Contextos, impasses e desafios na formação de trabalhadores em Saúde Coletiva no Brasil. Ciênc Saúde Coletiva 2013; 18:1677-82.
  10. Santos, BS.; Almeida-Filho, N. A universidade no século XXI: para uma Universidade Nova. Almedina. CES. Coimbra, 2008.